domingo, 24 de março de 2013

O Estranho

Acordei com um barulho de carro ao longe, levantei da cama assustada, e olhei pela janela, achei melhor me vestir, havia dormido além do que deveria. Eu estava mesmo muito cansada... Era hora de encarar o frio lá fora.
Por sorte havia aquecedor na casa, tomei um banho quente, troquei de roupa e desci, engoli alguma coisa, embora estivesse sem fome.
Tinha um encontro inevitável àquela manhã e precisava mesmo sair, sem horas para voltar por sinal.

Estranhei que ao tentar passar pela porta ela estivesse trancada, não me lembro de tê-lo feito na noite anterior, alias da noite anterior eu me lembro de pouquíssima coisa.
Onde estaria a cópia da chave? Ah é verdade também tinha que tentar encontrar a tal da Amélie Collet em Champ Les Sims, a cidade era pequena e se eu perguntasse a alguém na praça, de repente pudessem me informar, lembraria de fazer isso mais tarde, quando por lá passasse.
Mesmo com toda aquela neve o dia tinha aberto, estava ensolarado, dei um jeito na porta e com sorte consegui abri-la, não lembrava mesmo onde havia posto a chave. A cidade era pequena e não correria o risco de ser assaltada, isso com certeza era uma coisa que há muitos anos havia deixado de acontecer em Champ Les Sims.

Ali estavam eles...
Fechei os olhos por um instante como se estivesse vendo o passado, um passado tão feliz que fora interromper-se de maneira tão trágica. Olhei fixamente para pequena imagem na lápide, onde minha mãe sorria, passei o dedo de leve sobre seu rosto alegre. Naquela época eu também era feliz.                                                                                                                                  

- Você esta bem? – alguém pronunciou atrás de mim.
Levantei assustada e recuperado o susto, respondi.
- Estou sim... Apenas vagando um pouco pelo passado.
- Ela era muito bonita! – falou ele indo em direção a lápide para a qual eu me encontrava compenetrada minutos atras. – Você se parece muito com ela.
- Há quanto tempo estava ai?
- Pouco menos de dez minutos, você estava tão absorta, não quis interromper.
- Ela era linda!
- Você também o é... Mas me parece triste
- É... Esse ano bem mais do que os anteriores e provavelmente bem menos que os próximos... Isso é mau. De repente foi um erro ter voltado, mas era preciso, eu tinha que voltar! – respondi com certa convicção.

                           

- Quer conversar sobre isso? – senti que ele procurava as palavras certas com intuito de se aproximar. Estendeu-me as mãos e sem mais me conter abracei apertado o estranho que me oferecia colo.
- Você não entende, é como se eu tivesse me perdido aqui no dia em que tudo aconteceu, e agora eu não posso continuar fugindo, assim como não deveria ter fugido e nem me mantido distante de tudo, inclusive de mim mesma. Tudo isso teria me machucado um tempo, por que me lembraria de tudo o tempo todo, mas depois fatalmente eu iria me acostumar, e hoje já estaria livre.
- Não sei ao certo o que possa perturbá-la tanto na morte de sua mãe, mas se é o que sente...

- Um dia de repente quando eu puder conviver com esta realidade eu conte a você. – Soltei-me dos braços dele e voltei à lápide – Quanta ironia traz a vida... Eu nada sei de ti ainda assim, faço promessas de dividir contigo uma dor que eu nunca dividi com ninguém.
- Quer sair daqui? – Dessa vez foi eu quem senti os braços dele, passando sobre o meu ombro, mas não resisti.
- Que horas são? Devo estar aqui a bastante tempo já.
- E se continuar ai parada, vai acabar congelando... Acredite. Venha, levo você ate a Catânia, nada que um chocolate quente não resolva.

- Quem é você hein?
- Um dia de repente eu conte a você. – reconheci propositalmente minhas palavras nas dele.
- Não posso ir ate a Catânia, tenho compromisso as 2:30 na produtora.
- Então acho melhor se apressar.
- Você não é daqui é?
- Pareço Francês?
- Não. Vai pelo menos me dizer seu nome?
- Vai me deixar acompanhá-la ate a produtora?
- Tenho outra alternativa?
- É... Penso que não.
Ele segurou minha mão e fui me deixando guiar por ele enquanto conversávamos.

    Eram 3:00 horas quando entrei na produtora acompanhada de uma pessoa cujo nome eu não fazia idéia de qual fosse.  Eu conseguia vê a interrogação gigante sobre a cabeça do Yves tentando adivinhar quem era a pessoa ao meu lado e se eu tivesse o dom de lê mentes, conhecendo-o como o conhecia, saberia exatamente tudo o que estaria se passando na cabeça oca dele naquele momento.

Sabia de sua evolução na área de costura, mas não fazia idéia de que meu amigo era tão prendado também na produção daquela bebida dos deuses. Com o inverno as videiras estavam adormecidas, impossibilitando sua colheita, caso contrario ele teria feito um passo a passo comigo desde a colheita do fruto até a fase final da produção. Eu estava satisfeita, em tomar apenas conhecimento de como produzira bebida, era uma aluna dedicada, e dadas as informações necessárias troquei de roupa e fomos para a fase final...
- Tem certeza mesmo que pretende colocar seus pezinhos ai, moça?
- Porque não teria? Não cheguei ate aqui, pra desistir por não querer me sujar.
- Tem razão... De qualquer forma não vou me arriscar e ficar perto de você. – Ele procurou um assento um pouco distante e de lá se divertia, vendo-me machucar desajeitadamente as uvas na tina.

Eu poderia dizer que aquele era um trabalho divertido, me esqueci por algumas vezes que se tratava da fabricação de néctar, ao longe sentia os olhos do Yves, hora sobre mim, hora sobre o meu amigo desconhecido, que por sua vez também me observava de longe.
Eu estava maravilhada!
Nunca imaginei que uma tarde na produtora fosse me render tão bons momentos ao lado de um estranho...
Ele me ajudou sair da tina...
- Valeu à pena?
- Muito.
- Você estava tão linda! – corei ao ouvir as palavras dele – Não parecia a moça melancólica que encontrei naquele cemitério.
- Vai me dizer seu nome agora?
Ele sorriu...
- Se eu te disser meu nome, vai fazer alguma diferença? Será que não está sendo perfeito assim? Como dois desconhecidos? Sabe você fica fascinante quando sorri. Deveria sorrir mais vezes.
- Já vi que não vou mesmo conseguir arrancar de você esta informação.
- Por que arrancar quando se pode conseguir?


Confesso que não entendi o que ele quis dizer com aquelas palavras, não havia nada que eu pudesse oferecer a ele em troca dessa informação que se tornaria tão irrelevante quando eu voltasse a Bridge ou pra casa. Então olhei o relógio e me dei conta da hora que já estava bastante avançada.
- Preciso ir...
Ele ficou parado perto da tina como alguém que tinha algo ainda a dizer, mas não tentou impedir quando sai.

Falei com Yves sobre aquela aula incrível... A companhia dele aquela tarde e a dedicação com que me passou seus conhecimentos, ele por sua vez parecia mais interessado em saber quem era a pessoa na minha companhia, sorrimos juntos... E me despedi prometendo encontrá-lo novamente antes de voltar para Bridge.
                          
- Para alguém que me concedeu o prazer de sua companhia durante uma tarde inteira, não creio que irá negar-me a honra de levar você em casa.
- Ousado de sua parte, e se eu te dissesse um ‘não’?
- O que me restaria fazer se fosse o caso, a não ser recolher-me a minha insignificância?
- Farei mais que isso... Toma comigo um chocolate quente na Catânia?
- Só se for com croissants!
- Fechado!

Naquela noite fomos a Cafeteria, não sei a quanto tempo eu não me divertia na companhia de alguém, de um homem, de um quase desconhecido. Ele era ousado, me fazia sorrir por que eu tinha o sorriso mais lindo que ele já tinha visto em alguém. Não falamos de passado, éramos dois estranhos nas ruas de Paris vivendo um presente que havia chegado para nós como uma dádiva estranha... E assim entramos noite adentro, com canecas de chocolates quentes e croissants amanhecidos.


Sob a luz inebriante da lua e diante da fonte de águas congeladas, sentei no banco.
- Está frio não é?
Ele sentou do meu lado e segurou minhas pernas colocando-as sobre as dele, tirou meus sapatos e levou suavemente sua boca até os meus pés gelados, soprando sobre eles um hálito morno enquanto acariciava-os com as mãos, aconchegando-os entre elas.
Nunca ninguém tinha feito algo parecido, mas cada momento ao lado dele me deixava fascinada. Não sei explicar o que senti com aquele gesto. Ele era só um estranho, e eu uma mulher revestida por uma armadura incapaz de absorver alguma espécie de sentimento por alguém naquele momento.
                                     

- Tem certeza que não quer companhia?
- Tenho.
- Vai ficar bem?
- Com meus CDs e meus livros e quem sabe uma taça ou outra de néctar.
- Devo te agradecer...
- Você foi maravilhoso.
Evitamos qualquer outra palavra naquela hora, pois nada traduziria aquele momento, e sem mais que pudesse ser dito, nos despedimos com olhares e um singelo beijo no rosto.                                                          
                          
Eu já tinha aberto a porta de casa, quando do carro ouvi ele falar:
- Marcello!!!
- O que?
- Marcello. É esta a resposta para a sua pergunta, Morton – e acelerando o carro sumiu em meio a escuridão.
                        
Devo dizer que entrei maravilhada... Eu tinha vivido um sonho ou quase isso. Fui até a cozinha, peguei um copo e subi as escadas, coloquei uma garrafa de néctar sobre o criado-mudo, no Ipad uma musica. E na cabeça... Nesta 'o estranho' se fazia presente em uma sucessão de várias imagens, aquele dia era um filme, onde eu repetidamente voltava, pra apertar o play. Troquei de roupa e ao descalçar os sapatos lembrei-me do episódio na praça.

- ‘Marcello’... Então era esse o seu nome. – Sorri enquanto balbuciava lentamente cada letra.
Aquela noite, antes de adormecer me perguntei por inúmeras vezes o que de errado havia comigo. Porque tanto encanto se no fundo eu sabia que era só isso? Porque não conseguia me dá uma nova chance? Tantas perguntas, nenhuma resposta... E em meio a tantas indagações, adormeci.