Acordei com um
barulho de carro ao longe, levantei da cama assustada, e olhei pela janela,
achei melhor me vestir, havia dormido além do que deveria. Eu estava mesmo
muito cansada... Era hora de encarar o frio lá fora.
Por sorte
havia aquecedor na casa, tomei um banho quente, troquei de roupa e desci, engoli
alguma coisa, embora estivesse sem fome.
Tinha um encontro inevitável àquela manhã e
precisava mesmo sair, sem horas para voltar por sinal.
Estranhei que
ao tentar passar pela porta ela estivesse trancada, não me lembro de tê-lo
feito na noite anterior, alias da noite anterior eu me lembro de pouquíssima
coisa.
Onde estaria a
cópia da chave? Ah é verdade também tinha que tentar encontrar a tal da Amélie
Collet em Champ Les Sims, a cidade era pequena e se eu perguntasse a alguém na
praça, de repente pudessem me informar, lembraria de fazer isso mais tarde,
quando por lá passasse.
Mesmo com toda aquela neve o dia tinha aberto,
estava ensolarado, dei um jeito na porta e com sorte consegui abri-la, não
lembrava mesmo onde havia posto a chave. A cidade era pequena e não correria o
risco de ser assaltada, isso com certeza era uma coisa que há muitos anos havia
deixado de acontecer em Champ Les Sims.
Ali estavam
eles...
Fechei os olhos por um instante como se
estivesse vendo o passado, um passado tão feliz que fora interromper-se de
maneira tão trágica. Olhei fixamente para pequena imagem na lápide, onde minha
mãe sorria, passei o dedo de leve sobre seu rosto alegre. Naquela época eu
também era feliz.
Levantei
assustada e recuperado o susto, respondi.
-
Estou sim... Apenas vagando um pouco pelo passado.
-
Ela era muito bonita! – falou ele indo em direção a lápide para a qual eu me
encontrava compenetrada minutos atras. – Você se parece muito com ela.
-
Há quanto tempo estava ai?
-
Pouco menos de dez minutos, você estava tão absorta, não quis interromper.
-
Ela era linda!
-
Você também o é... Mas me parece triste
- Você
esta bem? – alguém pronunciou atrás de mim.
- É...
Esse ano bem mais do que os anteriores e provavelmente bem menos que os
próximos... Isso é mau. De repente foi um erro ter voltado, mas era preciso, eu
tinha que voltar! – respondi com certa convicção.
- Quer
conversar sobre isso? – senti que ele procurava as palavras certas com intuito
de se aproximar. Estendeu-me as mãos e sem mais me conter abracei apertado o
estranho que me oferecia colo.
- Você não
entende, é como se eu tivesse me perdido aqui no dia em que tudo aconteceu, e
agora eu não posso continuar fugindo, assim como não deveria ter fugido e nem
me mantido distante de tudo, inclusive de mim mesma. Tudo isso teria me
machucado um tempo, por que me lembraria de tudo o tempo todo, mas depois
fatalmente eu iria me acostumar, e hoje já estaria livre.
- Não sei
ao certo o que possa perturbá-la tanto na morte de sua mãe, mas se é o que
sente...
- Um dia de
repente quando eu puder conviver com esta realidade eu conte a você. –
Soltei-me dos braços dele e voltei à lápide – Quanta ironia traz a vida... Eu
nada sei de ti ainda assim, faço promessas de dividir contigo uma dor que eu
nunca dividi com ninguém.
- Quer sair
daqui? – Dessa vez foi eu quem senti os braços dele, passando sobre o meu
ombro, mas não resisti.
- Que horas
são? Devo estar aqui a bastante tempo já.
- E se continuar ai parada, vai acabar
congelando... Acredite. Venha, levo você ate a Catânia, nada que um chocolate
quente não resolva.
- Quem é você
hein?
- Um dia de
repente eu conte a você. – reconheci propositalmente minhas palavras nas dele.
- Não posso ir
ate a Catânia, tenho compromisso as 2:30 na produtora.
- Então acho
melhor se apressar.
- Você não é
daqui é?
- Pareço
Francês?
- Não. Vai pelo menos
me dizer seu nome?
- Vai me deixar
acompanhá-la ate a produtora?
- Tenho outra
alternativa?
- É... Penso
que não.
Ele segurou minha mão e fui me deixando guiar por ele enquanto conversávamos.
Eram 3:00
horas quando entrei na produtora acompanhada de uma pessoa cujo nome eu não
fazia idéia de qual fosse. Eu conseguia
vê a interrogação gigante sobre a cabeça do Yves tentando adivinhar quem era a
pessoa ao meu lado e se eu tivesse o dom de lê mentes, conhecendo-o como o
conhecia, saberia exatamente tudo o que estaria se passando na cabeça oca dele
naquele momento.
Sabia de sua
evolução na área de costura, mas não fazia idéia de que meu amigo era tão
prendado também na produção daquela bebida dos deuses. Com o inverno as
videiras estavam adormecidas, impossibilitando sua colheita, caso contrario ele
teria feito um passo a passo comigo desde a colheita do fruto até a fase final
da produção. Eu estava satisfeita, em tomar apenas conhecimento de como
produzira bebida, era uma aluna dedicada, e dadas as informações necessárias
troquei de roupa e fomos para a fase final...
- Tem certeza
mesmo que pretende colocar seus pezinhos ai, moça?
- Porque não
teria? Não cheguei ate aqui, pra desistir por não querer me sujar.
- Tem razão... De qualquer forma não vou me
arriscar e ficar perto de você. – Ele
procurou um assento um pouco distante e de lá se divertia, vendo-me machucar
desajeitadamente as uvas na tina.
Eu poderia
dizer que aquele era um trabalho divertido, me esqueci por algumas vezes que se
tratava da fabricação de néctar, ao longe sentia os olhos do Yves, hora sobre
mim, hora sobre o meu amigo desconhecido, que por sua vez também me observava
de longe.
Eu estava
maravilhada!
Nunca imaginei
que uma tarde na produtora fosse me render tão bons momentos ao lado de um
estranho...
Ele me ajudou
sair da tina...
- Valeu à
pena?
- Muito.
- Você estava
tão linda! – corei ao ouvir as palavras dele – Não parecia a moça melancólica
que encontrei naquele cemitério.
- Vai me dizer
seu nome agora?
Ele sorriu...
- Se eu te
disser meu nome, vai fazer alguma diferença? Será que não está sendo perfeito
assim? Como dois desconhecidos? Sabe você fica fascinante quando sorri. Deveria
sorrir mais vezes.
- Já vi que
não vou mesmo conseguir arrancar de você esta informação.
- Por que arrancar quando se pode conseguir?
Confesso
que não entendi o que ele quis dizer com aquelas palavras, não havia nada que
eu pudesse oferecer a ele em troca dessa informação que se tornaria tão
irrelevante quando eu voltasse a Bridge ou pra casa. Então olhei o relógio e me
dei conta da hora que já estava bastante avançada.
- Preciso
ir...
Falei com Yves
sobre aquela aula incrível... A companhia dele aquela tarde e a dedicação com
que me passou seus conhecimentos, ele por sua vez parecia mais interessado em
saber quem era a pessoa na minha companhia, sorrimos juntos... E me despedi
prometendo encontrá-lo novamente antes de voltar para Bridge.
- Para alguém
que me concedeu o prazer de sua companhia durante uma tarde inteira, não creio
que irá negar-me a honra de levar você em casa.
- Ousado de
sua parte, e se eu te dissesse um ‘não’?
- O que me
restaria fazer se fosse o caso, a não ser recolher-me a minha insignificância?
- Farei mais
que isso... Toma comigo um chocolate quente na Catânia?
- Só se for
com croissants!
- Fechado!
Naquela
noite fomos a Cafeteria, não sei a quanto tempo eu não me divertia na companhia
de alguém, de um homem, de um quase desconhecido. Ele era ousado, me fazia
sorrir por que eu tinha o sorriso mais lindo que ele já tinha visto em alguém.
Não falamos de passado, éramos dois estranhos nas ruas de Paris vivendo um
presente que havia chegado para nós como uma dádiva estranha... E assim
entramos noite adentro, com canecas de chocolates quentes e croissants
amanhecidos.
Sob
a luz inebriante da lua e diante da fonte de águas congeladas, sentei no banco.
-
Está frio não é?
Ele
sentou do meu lado e segurou minhas pernas colocando-as sobre as dele, tirou
meus sapatos e levou suavemente sua boca até os meus pés gelados, soprando
sobre eles um hálito morno enquanto acariciava-os com as mãos, aconchegando-os
entre elas.
Nunca
ninguém tinha feito algo parecido, mas cada momento ao lado dele me deixava
fascinada. Não sei explicar o que senti com aquele gesto. Ele era só um
estranho, e eu uma mulher revestida por uma armadura incapaz de absorver alguma
espécie de sentimento por alguém naquele momento.
- Tem certeza
que não quer companhia?
- Tenho.
- Vai ficar
bem?
- Com meus CDs
e meus livros e quem sabe uma taça ou outra de néctar.
- Devo te
agradecer...
- Você foi
maravilhoso.
Evitamos
qualquer outra palavra naquela hora, pois nada traduziria aquele momento, e sem
mais que pudesse ser dito, nos despedimos com olhares e um singelo beijo no
rosto.
Eu já tinha
aberto a porta de casa, quando do carro ouvi ele falar:
- Marcello!!!
- O que?
- Marcello. É esta a resposta para a sua pergunta, Morton – e acelerando o
carro sumiu em meio a escuridão.
Devo
dizer que entrei maravilhada... Eu tinha vivido um sonho ou quase isso. Fui até
a cozinha, peguei um copo e subi as escadas, coloquei uma garrafa de néctar sobre
o criado-mudo, no Ipad uma musica. E na cabeça... Nesta 'o estranho' se fazia presente em uma sucessão de várias imagens, aquele dia era um filme, onde eu repetidamente voltava, pra apertar o play. Troquei de roupa e ao descalçar os sapatos lembrei-me do
episódio na praça.
-
‘Marcello’... Então era esse o seu nome. – Sorri enquanto balbuciava lentamente
cada letra.
Aquela noite, antes de adormecer me perguntei
por inúmeras vezes o que de errado havia comigo. Porque tanto encanto se no
fundo eu sabia que era só isso? Porque não conseguia me dá uma nova chance?
Tantas perguntas, nenhuma resposta... E em meio a tantas indagações, adormeci.